O fator humano frente à transformação digital nas empresas

O futuro é mais tecnológico, mas os avanços de produtividade são resultado da ação das pessoas.

Quando o escritor Aldous Huxley, em 1932, no livro “Admirável Mundo Novo” narra a história de uma sociedade futurista, em certo momento, ao falar sobre produtividade ele escreve que “as rodas da máquina têm de girar constantemente, mas não podem fazê-lo se não houver quem cuide delas”. Quando hoje falamos sobre a automação dos processos de produção ou da inclusão de novas ferramentas tecnológicas no dia a dia das companhias, sabemos que à frente delas estão as pessoas. São funcionários, gerentes e CEOs que precisam estar conectados e cientes de seus papéis nessas mudanças, porque sem eles as rodas da máquina nem começam a girar.

Entre as 35 empresas destacadas na décima sétima edição da pesquisa “As Melhores na Gestão de Pessoas” no anuário Valor Carreira, o lado humano nesse momento de inclusão digital nos métodos de produzir e trabalhar é visto como fundamental para que seus negócios se modernizem e avancem rumo a um futuro mais tecnológico. Em diferentes estágios de implementação dessa transformação, a maior parte cita a empatia como uma habilidade socioemocional crítica para que tudo seja conduzido com um olhar mais aberto para o impacto que o novo e o desconhecido podem causar nas pessoas.

“A velocidade das transformações é proporcional à capacidade da organização de comunicar essas mudanças e dependerá muito das competências identificadas entre os funcionários”, diz Guy Cliquet, coordenador dos programas de pós-graduação do Insper. “Não adianta montar uma estratégia sem ter um plano pronto que diga quais são as necessidades de cada área da companhia.”

Mapear o conhecimento existente e estar ciente do que precisa ser melhorado ou trazido de fora é uma prática que está presente em boa parte das companhias destacadas na pesquisa. O Bradesco, por exemplo, há dez anos vem trabalhando com consultorias para identificar quais serão os cargos demandados nos próximos cinco a dez anos. “O que desenhamos tem se confirmado”, comemora Glaucimar Peticov, diretora-executiva do banco.

Ela diz que o Bradesco está aproveitando a diversidade que existe entre os 98 mil funcionários para promover mudanças internas e convidando as pessoas a experimentar uma nova jornada de trabalho. O banco também vem apostando em cursos de capacitação – em 2018, investiu R$ 175 milhões. Muitos têm sido realizados com metodologias alternativas, como games e aulas em estúdio usando inteligência artificial e realidade virtual. Há também o ensino que acontece na Universidade Corporativa Bradesco, que tem 12 campi e por onde passam mais de três mil alunos por semana.

A própria tecnologia é uma aliada na hora de identificar o nível de aptidão do profissional ao novo mundo digital. Um novo sistema de armazenamento e processamento de informações, o Learning Management System (LMS), por exemplo, vai ajudar a área de recursos humanos da Cofco a administrar o aprendizado em toda a companhia. “Vamos ter um perfil atualizado das competências e conhecimentos aprendidos pelos colaboradores interna ou externamente”, explica João Castro, diretor de RH.

Após o mapeamento das competências dos funcionários e de sua aderência ao projeto de transformação da empresa, algumas vezes é preciso buscar no mercado alguma habilidade que faltou. No Itaú Unibanco, o presidente Candido Bracher diz que, depois de um trabalho inicial com as lideranças para avaliar o que já existia de fortalezas e o que precisaria ser desenvolvido tanto nas agências como na administração central, o banco passou a investir no desenvolvimento das competências que seriam importantes para o seu processo de digitalização. “Qualificamos os colaboradores, mas também fomos buscar no mercado pessoas com conhecimentos complementares, como designers, especialistas em user experience (UX) e cientistas de dados”, conta.

Eduardo Vaz, superintendente do Instituto Euvaldo Lodi (IEL), diz que é mais fácil capacitar em casa do que contratar novos funcionários. Ele afirma que em toda empresa existem aqueles que adotam novas tecnologias rapidamente e outros que vão se engajar vendo os outros aderirem. “Hoje existem empresas com quatro ou cinco gerações diferentes, nas quais os mais velhos aprendem com os mais novos. Tudo depende se está sendo feita uma boa gestão da mudança.”

Identificar alguém com facilidade para ajudar a propagar a cultura digital dentro da organização foi outra estratégia bastante citada pelas empresas com melhor desempenho na pesquisa. A Belagrícola criou um projeto chamado Everest para sinalizar quais funcionários poderiam ser os facilitadores do conhecimento digital em suas áreas de atuação. “São pessoas abertas à nova cultura organizacional, capazes de compreender os processos e que respeitam o tempo de aprendizado dos seus colegas de trabalho”, explica Rebeca Lins, diretora de RH.

No grupo Protege, especializado em soluções de segurança, a área de recursos humanos tem trabalhado em parceria com a área de tecnologia para descobrir pessoas-chave para cada novo processo de digitalização. “Elas respondem ao empoderamento com mais responsabilidade”, diz Jorge Tavares de Almeida, gerente corporativo de RH. Na transformação digital, é importante que os gestores estejam abertos para delegar e dar mais autonomia aos funcionários. “Quando o líder tem essa visão é possível que a própria equipe faça cascatear as mudanças. Ao delegar, ele ajuda a quebrar resistências”, diz Daniel Santiago Faria, sócio da consultoria Linco People Experts.

Criar meios de compartilhar o conhecimento é outra prática que ajuda a acelerar as transformações. Na credenciadora de cartões Getnet existe hoje um esforço para democratizar o aprendizado de cada funcionário em treinamentos via mobile ou on-line. Rogério Said, diretor de qualidade, RH e governança corporativa, exemplifica: “Um diretor da área de finanças passou seis meses na China para estudar novos sistemas de pagamento, e na volta ele teve que preparar um treinamento com o que aprendeu para toda a companhia”.

A Método Potencial Engenharia desenvolveu um processo chamado “lições aprendidas”, para que as novas práticas aplicadas em projetos sejam divididas entre todos os funcionários. “Cada liderança de área fica responsável por multiplicar esses conhecimentos”, diz seu presidente, Hugo Marques da Rosa. A Tokio Marine lançou neste ano o blog Tokio Inova para que os dois mil funcionários possam compartilhar inovações sugeridas e implementadas em projetos, em suas respectivas áreas. “É uma forma de engajar e estimular o protagonismo dos funcionários nos processos de inovação”, afirma Juliana Zan, superintendente de RH da seguradora.

A transformação envolve sempre um esforço coletivo. Para nivelar o conhecimento digital na organização é preciso realizar várias iniciativas voltadas para a requalificação, diz Eduardo Marchiori, CEO da Mercer. “Uma maneira é pela cocriação com a formação de mesas de trabalho mais ágeis onde as pessoas possam trazer diferentes pontos de vista”, afirma.

A aproximação com startups, que já vêm com o DNA da inovação, também pode ajudar a influenciar os funcionários a experimentar novas formas de trabalhar. “Elas são mais abertas para escutar a base, conseguem incorporar informações importantes para o negócio”, diz Faria, da Linco.

A SLC Agrícola, por exemplo, criou um programa chamado AgroExponencial, que seleciona startups para o fornecimento de soluções para aprimorar seus processos internos com o uso de tecnologia. “Ele estimula os nossos colaboradores a apresentar soluções inovadoras internamente”, diz Déa Machado, gerente de gestão de pessoas e comunicação corporativa.

Por trás de todas as iniciativas da companhia para capacitar e incluir os funcionários nos processos de inovação, Déa diz que está o esforço de fomentar o uso de novas tecnologias e torná-las amigáveis. “Queremos desconstruir a imagem da complexidade e mostrar que elas existem para apoiar as atividades rotineiras, o que permite às pessoas serem mais criativas e terem mais qualidade no trabalho e na vida”, afirma.

Mudar o modo de pensar a tecnologia no trabalho é um dos maiores entraves para que os processos de transformação sejam bem-sucedidos. “Existe muito medo por parte dos funcionários de que alguém descubra o que eles não sabem”, diz José Cláudio Securato, CEO da escola de negócios Saint Paul. Ele diz que, na verdade, todos brigamos hoje pelos mesmos conhecimentos. “Não dá mais para o líder fingir que sabe de tudo.”

Segundo ele, existem as competências tradicionais que são obrigatórias, que precisam ser ampliadas, e as novas que todos precisam aprender um pouco, como estatística e ciências de dados. “Nem todo mundo vai saber programar, mas é preciso saber sobre as oportunidades em inteligência artificial e como obter ganhos com esse tipo de tecnologia”, completa Marchiori, CEO da Mercer.

“Em um primeiro momento, temos que ajudar a minimizar a ansiedade, a insegurança e o medo que qualquer transformação provoca nas pessoas. É comum elas pensarem que perderão seus empregos e que suas competências não serão mais úteis”, afirma Renata Luca, diretora de DHO da Security, empresa de serviços de segurança. Segundo ela, cabe à área de RH participar das decisões estratégicas da empresa para fazer valer a humanização nos processos. “Precisamos oferecer contrapontos para possíveis excessos”, diz.

A melhor competência que se busca em todo funcionário hoje é a vontade de aprender. Para que o esforço para adequar a força de trabalho aos métodos digitais não seja em vão, é necessário que todos estejam abertos para absorver o que é novo. “A comunicação por parte da empresa é essencial para que isso aconteça”, diz o professor Guy Cliquet, do Insper. “As pessoas precisam saber qual a expectativa da empresa em relação a elas, quais ações serão realizadas e de que forma cada um vai atuar. Elas precisam ter clareza do senso de urgência da transformação digital ou então não vão se comprometer.”

Ao criar uma diretoria de empreendedorismo e digital, que reporta diretamente ao presidente da companhia, a mensagem da Eurofarma é que existe um comprometimento de levar as mudanças adiante. “Essa área já nasce com muitos desafios, entre eles o fomento ao intraempreendedorismo, estimulando a inovação interna a partir do conhecimento gerado pela própria organização”, diz Mikiko Inoue, vice-presidente de RH.

Na Sem Parar, foram criados hubs de transformação digital, como equipes multidisciplinares (squads), laboratórios de soluções tecnológicas, entre outras áreas específicas. “Os funcionários nos procuram espontaneamente para buscar apoio para soluções de estrutura que reflitam esse novo modelo, criando células de discussão sobre novas tecnologias e inteligência de dados”, diz Maria Eduarda Bochner, head do RH. Ela diz que todas as mudanças começaram por meio de uma diretriz estratégica que mobilizou o comitê executivo. “Agora todos são ‘sponsors’ do processo. Sem o apoio da alta liderança não existe transformação.”

A cultura organizacional é o principal elemento para alavancar a transformação. “É o grande diferencial da empresa e o RH é o guardião dessa cultura e o responsável por ajudar os colaboradores a se adaptarem”, diz Leopoldo Paniagua, diretor de RH da Coca-Cola Femsa Brasil. Resgatar os valores da companhia e colocá-los como norteadores das mudanças ajuda no engajamento das equipes.

Na Gazin, Vivane Thomaz, gerente administrativa de gestão de pessoas, diz que fazer o resgate histórico da companhia por meio de narrativas de histórias sobre o grupo é um dos meios para conectar os funcionários. “Fazemos vídeos com atores que encenam momentos importantes, como a decisão de comprar a primeira loja com a venda do jipe do pai do fundador, por exemplo. Acreditamos que imagens falam mais que palavras”, conta. Com esse tipo de ação ela diz que o grupo consegue mostrar por que certas medidas e decisões corporativas acontecem.

“É possível promover a digitalização sem fazer uma transformação cultural radical”, diz o consultor da Linco. A tecnologia dá ao indivíduo a capacidade de aprender mais rápido, mas é preciso que ele tenha as ferramentas para isso. “Para fomentar a capacitação digital no país é preciso um esforço conjunto entre o Estado, as universidades e a iniciativa privada”, diz Marchiori, da Mercer. O que não se deve esquecer é que por trás de toda engrenagem, por mais avançada e tecnológica que ela seja, existe um humano que precisa ser motivado a cooperar.

Fonte: Valor Econômico

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2019-11-07T14:18:44+00:00