Home office chega para ficar, mas exige mais planejamento

Maioria das empresas de todos os setores pretende adotar modelo parcial ou integralmente

1 de 2 Paulo Correa, da C&A: “Vamos mudar totalmente nosso layout e ter um número significativo de pessoas em casa” — Foto: Anna Carolina Negri/Valor

No tabuleiro do que se convencionou chamar de “futuro do trabalho”, a humanidade, mesmo que de forma não homogênea, avançou algumas casas com a chegada da pandemia. Isso porque a doença levou boa parte da força de trabalho mundial a se conectar e a trabalhar de casa. Companhias e profissionais se tornaram mais resilientes e adaptáveis a uma tendência de emprego remoto que enxergávamos como certa para alguns setores e um pouco mais distante para outros, mas que, da noite para o dia, surge como uma possibilidade real em nossas vidas.

Em uma pesquisa da Fundação Dom Cabral com a Talenses, realizada com 375 companhias no Brasil, mais de 70% sinalizaram que pretendem adotar o home office parcial ou integralmente depois da pandemia. Na indústria, essa percepção alcança quase 80% das companhias e em serviços, 89%. O comércio é o setor que menos espera essa evolução.

Nem todos os especialistas, no entanto, acreditam que essa aceleração do home office vai se tornar o “novo normal”. Para Peter Cappelli, diretor do Centro de Recursos Humanos e professor de administração de Wharton, escola de negócios da Universidade da Pensilvânia, muitas empresas devem retornar à forma de emprego tradicional depois que a covid-19 passar. “Ou voltamos a um trabalho típico ou elas vão ter que fechar”, afirma.

Não se trata apenas de empurrar as pessoas para casa, mas de repensar como elas podem realizar funções

O fato é que o tipo de trabalho que a maior parte dos profissionais vivencia hoje em suas casas é apenas um esboço do trabalho a distância mais estruturado defendido como tendência para o futuro. “Este não é um teste justo para o trabalho remoto, que exige um redesenho de como o trabalho deve funcionar nas companhias. Não se trata apenas de empurrar as pessoas para casa, mas de repensar como elas podem realizar suas funções de outro modo, mantendo os benefícios de poderem trabalhar de onde quiserem”, diz Erin Kelly, professora da escola de negócios MIT Sloan e que estuda as relações de trabalho nas organizações.

Após essa adoção forçada, muitas companhias começam a levar em conta os benefícios do trabalho a distância, principalmente relativos a redução de custos. Em Nova York, o preço do aluguel de escritórios após o isolamento social caiu pela metade. “A necessidade de grandes espaços para escritórios será reduzida”, diz Dan Schawbel, fundador do WorkplaceTrends.com e da consultoria Millenials Branding. Mas, além de diminuir os gastos com infraestrutura física, as companhias querem ter um ganho de produtividade o que, neste momento, é mais complicado. O economista de Stanford Nicholas Bloom defende que o movimento global de trabalho em casa, destinado a manter a produção durante a pandemia, pode na verdade gerar uma queda na produtividade mundial e ameaçar o crescimento econômico por muitos anos. “Estamos trabalhando em casa ao lado de nossos filhos, em espaços inadequados, sem opção e sem dias de trabalho definidos”, afirmou em artigo recente no site de Stanford.

O home office de hoje está longe de ser o que se espera do trabalho remoto em sua plenitude. A divisão do espaço com família, parceiros, filhos, irmãos e pets pode afetar o desempenho dos profissionais. Empresas que já tinham algumas iniciativas de trabalho remoto e políticas mais bem estabelecidas entendem essas dificuldades.

2 de 2 Sheila Ceglio, da Pfizer: encontro para apresentar os coworkers de cada um, cachorros, filhos e membros da família — Foto: Divulgação

É o caso do BV (antigo Banco Votorantim) que há três anos oferece home office, atingindo 1,7 mil pessoas em 2019 e, nessa crise conseguiu ampliar para todos os 4 mil funcionários. Para ajudar o empregado a equilibrar melhor os afazeres domésticos e o trabalho, a diretora da área de pessoas e cultura do banco, Ana Paula Tarcia, conta que incluiu uma pausa maior no horário do almoço, estendendo das 11 às 14 horas, que é compensada depois.

Para o advogado Murilo Magalhães, um dos funcionários do banco que passaram a trabalhar de casa, um dos desafios é a disciplina de saber quando se deve parar. A maior vantagem é não ter que enfrentar as três horas de deslocamento diárias para superar o trânsito da capital paulista. Já a maior desvantagem, segundo ele, é estar longe dos colegas.

Esse é um dos pontos que, de fato, incomoda os brasileiros no trabalho remoto. Em pesquisa realizada em março pela Ticket, com 7 mil profissionais, cerca de um quinto indicou sentir falta dos companheiros do escritório.

Economista de Stanford defende que tendência pode gerar queda na produtividade mundial e ameaçar crescimento

Nas reuniões remotas, que se tornaram mais objetivas, segundo especialistas, os brasileiros sentem falta do bate-papo antes de introduzir a pauta de trabalho. “É preciso tomar cuidado para não perdermos esse nosso aspecto cultural”, diz Caroline Yokomito, sócia da área de consultoria da Deloitte. Embora, segundo ela, seja constrangedor marcar uma reunião de duas horas nessa crise, não dá para querer ter a objetividade dos americanos e alemães. “Gostamos de falar de futebol e conversar.”

Para manter esse vínculo humano vivo na empresa, muitas companhias passaram a realizar neste período de isolamento happy hours virtuais, onde é possível entrar um pouco na intimidade dos funcionários e gestores. “Houve um encontro específico para apresentar os coworkers de cada um: cachorros, filhos, membros da família”, diz Sheila Ceglio, diretora de RH da Pfizer Brasil. Ela conta que até uma calopsita de um diretor tem marcado presença nesses eventos.

Há sete anos, a farmacêutica possui uma política de trabalho remoto e que, desde 2019, prevê até cinco dias por semana em casa. “Uma minoria escolhia ficar a semana toda e havia áreas onde a adesão era menor”, conta. A pandemia, segundo ela, quebrou os últimos paradigmas sobre o trabalho a distância. Muita gente mudou de ideia, inclusive um diretor de uma das áreas com menor adesão pré-crise.

Um dos maiores entraves para a adoção do home office é cultural e pode estar relacionado aos chefes. Em pesquisa da Mercer realizada com líderes de RH de 609 empresas no Brasil, em março, 83% apontaram a não aceitação do modelo por parte das lideranças. “Muitos ainda enxergam o home office como um day off”, diz Rafael Ricarte, líder na área de carreira da consultoria. Um terço dos entrevistados disseram também que consideram o nível hierárquico para oferecer elegibilidade ao home office, sem levar em conta a natureza do trabalho. “Por que um diretor de auditoria teria mais direito do que um programador?”, pergunta. Isso mostra, segundo Ricarte, que o nível de confiança nas organizações sobre o trabalho a distância ainda está restrito a cargos de confiança.

Para que o home office seja mais democrático nas empresas, é preciso que as métricas e os sistemas de avaliação sejam claros e que padrões sejam estabelecidos. “O monitoramento de dados precisa ser muito mais disciplinado no trabalho virtual”, diz Luiz Barosa, sócio da área de capital humano da Deloitte. “Muitas pessoas têm um bom desempenho no mundo físico e apresentam queda na entrega no trabalho remoto. Acompanhar esse progresso e entender as razões é fundamental.”

Uma delas é que o trabalho remoto pode não ser a melhor forma de trabalhar para todo mundo. Alguns profissionais podem não se adaptar ou preferir um modelo híbrido, com um ou dois dias no escritório para trocarem ideias e conviverem mais próximos aos gestores. Outros, podem apenas ser céticos sobre a eficiência do home office.

O CEO da C&A, Paulo Correa, é um dos que aderiram à ideia. Há dois meses no home office, ele já se sente tão animado com o que aprendeu que pretende tornar a prática majoritária nos escritórios da companhia no pós-crise. “Vamos mudar totalmente nosso layout e ter um número significativo de pessoas em casa”, diz. No começo, Correa tinha medo que as distrações prejudicassem seu trabalho em casa. “Disseram-me que funcionaria se eu mantivesse a mesma rotina de quando eu ia ao escritório, reservando horário para malhação, mantendo minha agenda e reuniões-chave nos intervalos”, conta. Pare ele, deu certo.

Hoje, Correa afirma que a pandemia lhe permitiu redescobrir “cantos da casa” que não costumava frequentar e a passar mais tempo com as filhas e a mulher. O CEO sente falta de visitar as lojas, interagir com clientes e de apertar a mão de seu interlocutor ao fechar um negócio ou uma contratação. No lado operacional, ele acredita que a crise aproximou os executivos da companhia do modus operandi 100% digital, fazendo da loja on-line o grande foco de trabalho.

Identificar a fluência digital da força de trabalho será um dos legados do home office forçado na pandemia. Outro será a conscientização de que, para transformar o modo de trabalhar na empresa olhando para o futuro, vai ser preciso investir mais em infraestrutura e tecnologia. Em pesquisa realizada pela consultora Betania Tanure com 45 líderes da área de gestão de pessoas em grandes companhias instaladas no país, 13% disseram que um dos erros na reação à pandemia foi subestimar as questões de infraestrutura, inclusive as mais simples, como a conexão de internet para os funcionários.

Mário Sérgio Sampaio, gerente de RH da Certisign, empresa de certificados digitais, disse que precisou adaptar duas vezes seu plano de home office desde o começo do covid-19. No início, ele havia incluído apenas uma parte dos funcionários, depois o modelo seria estendido aos demais. Com a escalada da pandemia, até esse plano emergencial foi acelerado. Mas muitos empregados não possuíam equipamentos para trabalhar a distância. A empresa pagou um táxi para que grande parte deles pudesse levar para casa seu monitor, computador, mouse e teclado. Em seguida, veio a reclamação sobre o mobiliário. Faltavam mesas, cadeiras e iluminação adequadas. Parte dessa demanda foi atendida, segundo o executivo.

No novo esquema, entrou também outro fluxo de produção, que foi organizado para que as decisões da liderança fossem mais ágeis. O que, segundo Mario, permitiu à empresa alcançar 90% do ritmo de trabalho de antes da crise. “Funcionou tão bem que estudamos reduzir em 50% o quadro que trabalha presencialmente”.

Os benefícios para as empresas, de modo geral, são mais mensuráveis. As vantagens para os trabalhadores, no entanto, não estão tão claras assim. Para Ricardo Coltro Antunes, sociólogo, professor da Unicamp, autor de “O sentido do trabalho”, aquilo que, em teoria, agregaria valor aos profissionais desaparece em detrimento às vantagens alcançadas pelas companhias. “Elas reduzem de forma significativa os custos e transferem para os assalariados o ritmo da jornada. É como se tivessem um cronômetro virtual ditando: se não cumprirem o que pedimos, dançam. A lógica vale da fábrica de sapatos ao jornalismo”, diz.

A sociabilidade também é outro ponto negativo para os profissionais, segundo Antunes. “Há uma eliminação da conversa natural do trabalho e as empresas consolidam assim o fim da discussão, da reflexão, da organização coletiva do trabalho.” Também elimina-se, na sua visão, uma “importante conquista da Revolução Industrial”: a delimitação da jornada. “No home office a vida pública e privada se mesclam”, afirma.

Em termos legais, o teletrabalho foi regulamentado no país, ou seja, ganhou regras específicas, na Reforma Trabalhista. O home office, portanto, passou a ser no Brasil, diferentemente de outros países como Portugal, algo acordado entre empregador e empregado, previsto por um aditivo no contrato de trabalho, que inclui informações sobre qual desses dois lados é responsável pelo custo dos equipamentos e da infraestrutura do funcionário que estará em casa. No home office, segundo as novas diretrizes da reforma, pode haver ou não o registro de ponto, a empresa não pode controlar onde o trabalho será realizado e é preciso um prazo mínimo de quinze dias para a mudança de regime de trabalho.

Durante a pandemia e com a adesão em massa ao home office pelas empresas na quarentena, a MP 927 de 2020 trouxe algumas novidades. A principal delas, segundo a advogada Caroline Marchi, sócia da área trabalhista do Machado Meyer, foi a dispensa da necessidade de alteração no contrato de trabalho para que as pessoas passassem a responder à empresa de casa.

Muitas companhias, segundo a advogada, resolveram arcar com custos extras (como equipamentos, luz e internet) por uma questão já prevista no contrato, para que não houvesse prejuízo no salário do funcionário ou em nome de uma política de benefícios. Era orientação expressa, porém, que as empresas assinassem um termo com os funcionários em até trinta dias após a adoção do teletrabalho. “Se elas quisessem incluir aí custos extras, poderiam”, afirma a advogada.

Depois que a pandemia passar, o destino do home office pode ser influenciado pelas lições aprendidas nesse período. Quem conseguiu ter uma boa experiência, provavelmente vai querer continuar, quem não conseguiu se organizar, vai preferir voltar ao modo tradicional. Muitos profissionais poderão sentir-se mais atraídos por empresas que oferecem trabalho remoto. “Ele será parte essencial do pacote de benefícios para recrutar e reter talentos ”, prevê Dan Schawbel.

O home office pode também se tornar uma nova fonte de burnout para os profissionais, pela falta de métricas e de confiança por parte dos gestores. “As pessoas mais bem sucedidas no trabalho remoto são aquelas que são tratadas como adultos”, diz Erin Kelly. Quem conseguir fortalecer a cultura da empresa e manter o engajamento dos funcionário, mesmo longe do escritório, pode chegar mais rápido ao trabalho do futuro. Mas esse não é um percurso sem obstáculos.

Fonte: Valor Econômico, por Stela Campos e Barbara Bigarelli, 25.05.2020

 

 

2020-05-27T11:40:45+00:00