A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), proferida dia 03 de outubro de 2019, nos autos do Recurso Extraordinário nº 870.947, que determinou a aplicação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo Especial (IPCA-E), em substituição à Taxa Referencial (TR), pretende pôr fim a um dilema, que se arrasta desde 2013, e cujos efeitos foram modulados, em 25 de março de 2015, nos autos das Ações Diretas de Inconstitucionalidades – ADI´s nº 4.357 e nº 4.425 (além de outras que versam sobre o mesmo tema).
Naqueles processos, o STF declarou inconstitucional o art. 100, § 12º, da CF/88, com a redação dada pela Emenda Constitucional (EC) nº 62, de 09 de dezembro de 2009, a qual determinava que a atualização de valores de requisitórios fosse feita com base no índice oficial da remuneração básica da caderneta de poupança (TR), que também é utilizado para os créditos trabalhistas, conforme previsto no art. 39, da Lei nº 8.177/91 e, agora, “ratificado” pela Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/17), a qual introduziu o § 7º, no art. 879 da CLT.
Com essa nova decisão, os valores dos precatórios devem ser pagos utilizando-se o IPCA-E como indexador, sem a modulação sugerida pelo Ministro Luiz Fux, que defendia sua aplicação somente a partir de 25 de março de 2015. Isso significa que, de acordo com a época própria dos vencimentos, os credores deverão receber valores reajustados com índices superiores, caso a TR fosse mantida.
No período integral da modulação anteriormente prevista, essa diferença atingia o montante de 21,48% até setembro de 2019, conforme se vê no gráfico abaixo:
Embora a decisão do STF refira-se a precatórios, certo é que, por arrastamento, ela deverá ser aplicada aos créditos trabalhistas, conforme já decidiu o Tribunal Superior do Trabalho (TST) nos autos do processo nº TST-ArgInc-479-6-.2011.5.04.0231, no qual o Ministro Cláudio Brandão levou ao plenário a suscitação de inconstitucionalidade do art. 39 da Lei nº 8.177/91.
Nem se diga que aquela inconstitucionalidade teria sido suprimida pela edição da Lei nº 13.467/17 (Reforma Trabalhista), que repetiu a TR como indexador dos créditos trabalhistas. Uma lei ordinária inconstitucional não deixa de sê-lo porque outra lei, de nível hierárquico idêntico, tenta revigorar seus efeitos. O direito brasileiro não aceita a repristinação.
No mesmo sentido, se a utilização da TR como indexador da economia não foi aceita pelo STF nem quando “ressurgiu das cinzas” por meio da Emenda Constitucional 62/2009, como poderia sê-lo por mera lei ordinária (Lei nº 13.467/17)?
É evidente a insurreição do legislador ordinário que, nesse ponto, não contribui, em nada, para a segurança jurídica pretendida por todos.
Ademais, é importante observar que a ratio decidendi é a mesma em ambos os casos (precatórios e créditos trabalhistas), ou seja, a TR, enquanto índice oficial de remuneração da caderneta de poupança (captação apriorística – ex ante), é incapaz de preservar o valor real do crédito, que é titular o cidadão e, por isso, não se presta como índice para medir a inflação (voto do Ministro Edson Fachin, nos autos da Reclamação nº 22.012, do Rio Grande do Sul – RS).
Este entendimento foi expressamente ratificado pelo STF, quando julgou improcedente a Reclamação nº 22.012 – RS, consolidando a decisão do TST que determinou a utilização do IPCA-E para atualizar os créditos trabalhistas (… o decisum ora impugnado está em consonância com a ratio decidendi da orientação jurisprudencial desta Suprema Corte, arrematou a Corte Maior).
Portanto, é bem provável que o TST brevemente voltará ao assunto para dar andamento a milhares de processos que aguardam essa definição, naquela e em outras cortes trabalhistas, devendo determinar – por tudo o quanto foi demonstrado acima – que os créditos trabalhistas devam ser atualizados por meio do IPCA-E, sendo recomendável a publicação de uma Tabela Única de Atualização de Débitos Trabalhistas, válida para todo o país, pacificando o tema e se prestigiando a segurança jurídica.
Nem se diga que a decisão do STF é para o caso dos precatórios e que não atinge aqueles em execução na Justiça do Trabalho. Isso porque estaríamos diante de verdadeira ofensa ao princípio da isonomia (aquilo que o Ministro Edson Fachin denominou de “ultraje à isonomia” em seu voto nos autos da Reclamação nº 22.012 – RS já citada), até porque os créditos trabalhistas são mais privilegiados do que outros, inclusive tributários (art. 186 do CTN).
O STF decidiu não modular os efeitos da sua decisão, conforme lhe autoriza o art. 27 da Lei nº 9.868/99. Com isso, a lei é inconstitucional desde sempre (efeitos ex tunc), ou seja, havendo créditos trabalhistas ainda em aberto, relativos ao período anterior a 25 de março de 2015 (modulação anterior que não prevaleceu na decisão final), eles devem ser pagos com IPCA-E desde sua origem, o que, por óbvio, irá aumentar o passivo trabalhista das empresas, as quais devem analisar cuidadosamente as vantagens de um acordo.
Mas outra questão, que não quer calar, é a seguinte: nesses últimos anos há muitos débitos trabalhistas que foram pagos utilizando-se a TR, índice menor do que o devido, segundo a decisão do STF. Esses débitos poderão “renascer das cinzas”? Os credores trabalhistas poderão requerer diferenças decorrentes da aplicação do IPCA-E?
Ressalte-se ainda que, na ação judicial, a atualização monetária sequer precisa ser pleiteada, por se tratar de pedido implícito, conforme prescreve o art. 322, § 1º, do CPC. E, considerando-se que sequer precisa constar do pedido inicial, devendo ser deferida de ofício, a decisão judicial, que condenou ao pagamento de verbas trabalhistas, faz coisa julgada quanto ao tema da atualização monetária?
Por envolver diversos institutos jurídicos ao mesmo tempo (efeitos da declaração de inconstitucionalidade, coisa julgada, prescrição, necessidade de ação rescisória e outros), esse tema comporta outro artigo.
A Reforma Trabalhista (Lei nº 13.467/17) trouxe o discurso fácil e encantador de combater o desemprego e a insegurança jurídica, fixando regras objetivas para a suposta aplicação do Direito do Trabalho.
Contudo, desde 2017, o número de desempregados continua o mesmo, com um grande aumento daqueles que desistiram de procurar um novo emprego. A segurança jurídica, por sua vez, está cada vez mais distante do sonho de consumo da sociedade brasileira, tanto para patrões como para empregados. E isso também é fruto da legislação açodada que, dentre alguns acertos, teve muitos erros, justamente por não ouvir a parte da sociedade interessada na real solução das lides.
(*) Paulo Cesar Baria de Castilho é Advogado. Mestre em Direito Tributário e Doutor em Direito do Trabalho pela PUC -SP. Pós-doutor pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – Portugal.
Fonte: JOTA, por Paulo Cesar Baria de Castilho (*), 28.10.2019
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